São Leopoldo, no Vale dos Sinos gaúcho, foi o ponto de partida de uma saga iniciada em 1824 com a fundação da primeira colônia de imigrantes alemães no país, então recém-emancipado de Portugal. Por influência de José Bonifácio, dom Pedro I decidiu inaugurar com eles um programa de imigração para o sul movido não apenas por questões de segurança nacional, diante das sucessivas disputas territoriais naquela então erma região fronteiriça, como também por um casamento de interesses políticos, literalmente – filha de Francisco I, da Áustria, a imperatriz Leopoldina tinha sangue germânico. A Alemanha de então era muito diferente da atual. Havia dezenas de reinados, principados, ducados, todos independentes, mas unidos precariamente pelo idioma, que viriam a ser unificados por Bismarck, em 1871. Bem antes disso começou o êxodo, impulsionado pela escassez de terras que apenas garantia sua posse ao primogênito de cada família.
Desde a fundação de São Leopoldo, aproximadamente 300 mil alemães se instalaram no Brasil, mas nem sempre fixaram raízes num único lugar. Depois de colonizar o Rio Grande do Sul, ainda no século 19 eles subiram para Santa catarina, hoje o Estado com a maior população de descendência alemã – mais de 20% do total –, e rumaram para o Espírito Santo, marcando também presença no Paraná e, em menor escala, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Pelo caminho foram semeando descendentes e expressivas lideranças em todas as áreas da vida nacional. Firmaram seu nome nessa galeria, entre outros, o ex-presidente Ernesto Geisel, Lauro Müller, ex-ministro da Viação do presidente Rodrigues Alves, e João Henrique Böhm, chefe do Exército de dom José I no Brasil.
Mas o mais importante: foi entre os alemães que a mensagem adventista inicialmente encontrou guarida e fincou raízes no Brasil. Gradualmente, o adventismo começou a se expandir alcançando os brasileiros de origem latina. Fundamental para isso foi o início da publicação de O Arauto da Verdade, em 1900, na língua portuguesa. Tanto que E. H. Meyers chegou a considerar esse fato como “uma nova era para nossa obra na região de fala portuguesa da América do Sul”.[1]
José Lourenço Mendes, comerciante e rizicultor em Campestre, Santo Antônio da Patrulha, RS, foi o personagem que marcou essa transição. Ele tinha cinco irmãs casadas: Maria José e Clara moravam na Fazenda Nova, a seis quilômetros de distância de Campestre, Ludovina e Sofia residiam em Rolante, no mesmo município de Santo Antônio, e Isabel, que além de não aceitar o adventismo, mudou-se para longe dos irmãos. Certamente por influência dos pais, esses irmãos conheciam a Bíblia e a amavam. Eram, portanto, terreno fértil à pregação do evangelho.
Em Taquara, mais ou menos a uns 20 quilômetros de Campestre, os adventistas já se haviam estabelecido. Não se sabe como se deu o primeiro contato deles com José Lourenço Mendes, mas possivelmente tenha se dado por meio de colportores ou de algum membro da igreja de Taquara. De qualquer forma, o nome e o endereço do comerciante de um jeito ou de outro chegaram às mãos dos líderes da Obra.
Em 1904, o pastor Ernesto Schwantes foi a Campestre visitar José L. Mendes, que aceitou prontamente a mensagem adventista. José, acompanhado pelo pastor e desejoso de levar a boa-nova a suas irmãs, dirigiu-se à casa de Saturnino Rabello de Oliveira, casado com Maria José, que igualmente abraçaram a fé adventista. Clara uniu-se a eles, embora o esposo discordasse.
José L. Mendes era um homem inteligente e comunicativo. Logo transformou sua casa num verdadeiro centro evangelístico e passou a pregar ardorosamente para seus fregueses, convidando-os também para participar das reuniões que o pastor Schwantes passou a dirigir numa das dependências da casa do comerciante. Muitos se interessaram, entre os quais Maria Joana do Lago, cujo esposo, João Ferreira do Lago, vulgo João Bonito, fora carrasco de uma das facções políticas que lutavam entre si, no passado. Dizem que, após degolar os vencidos – adultos e crianças –, ele lambia o sangue deles na lâmina da faca.
Certa noite, Maria Joana do Lago convidou o esposo para acompanhá-la a uma reunião na casa de José L. Mendes. Os dois se assentaram nos primeiros lugares da frente, ao lado do corredor. De repente, um perigoso desordeiro, deixando os capangas à entrada, foi à frente e desferiu uma punhalada no pastor Ernesto Schwantes, que conseguiu se esquivar. João Bonito deu um salto instintivo, ficando entre o bandido e o pregador. Apontou uma faca em direção ao ventre do agressor que resolveu bater em retirada, juntamente com seus capangas. O pastor Schwantes continuou o sermão.
Tão logo o adventismo penetrou em Campestre, Dalila Mendes de Souza (sobrinha de João Lourenço) e o esposo visitaram a prima e amiga Maria Emília dos Passos (também sobrinha de José), em Rolante, para falar-lhe sobre a nova religião de seu tio. Os Passos resolveram ir até Campestre para ouvir a mensagem e a aceitaram. Ao regressar, contaram tudo o que haviam aprendido a seus familiares. Como resultado, Adolfo Amador dos Reis, irmão de Maria Emília, também se converteu, tornando-se o líder espiritual de Rolante. A essa altura, o pastor Ernesto Schwantes tinha dois locais de trabalho exclusivamente com brasileiros de origem latina – em Campestre, com José L. Mendes, duas irmãs, os familiares e outros interessados; e em Rolante, com as duas outras irmãs de José, os esposos e filhos, e outras famílias.
A nova religião surgida em Campestre e Rolante, entre os brasileiros propriamente ditos, distinguia-se das outras existentes, dentre outras coisas, pela guarda do sábado, crença na mortalidade da alma, batismo por imersão de pessoas com idade suficiente para entender o que estavam fazendo e abstenção de certos alimentos considerados impróprios para comer (imundos). Além disso, combatiam o álcool, o fumo, os jogos de azar e ensinavam o afastamento dos bailes. Consequentemente, surgiram muitos opositores que começaram a perseguir esses novos crentes, considerando-os fanáticos e esquisitos.
Já no primeiro batismo, que deveria ser realizado no Rio dos Sinos, atrás do morro do Barreiro, no Campestre, a situação ficou complicada. Como o ambiente estivesse muito tenso, o delegado de polícia, a pedido de José Lourenço Mendes, mandou um tenente e seis soldados para manterem a ordem. Reuniram-se no local do batismo uns 80 homens armados de revólveres e facões para matar o oficiante e espancar os batizandos e demais adventistas. Como medida de prudência, a cerimônia foi suspensa e o pastor saiu protegido pelos policiais, voltando para Porto Alegre. Dias depois, entretanto, o batismo foi realizado discretamente. Mas as perseguições continuaram.
A dependência da casa de José L. Mendes, onde as reuniões eram realizadas, ficava a 15 metros da estrada pública. Os desordeiros jogavam foguetes, da estrada, para explodirem o mais próximo possível da sala de cultos. Mas os irmãos continuaram firmes, suportando com fé e paciência todas as injúrias. E a igreja crescia cada vez mais.
José Lourenço Mendes e esposa. A conversão dos Mendes, em 1904, marcou o início da transição do adventismo das colônias alemãs para os brasileiros de origem latina
A ênfase na educação cristã e o espírito missionário das igrejas de Campestre e Rolante produziram muitos líderes dedicados à obra adventista. Em 1925, os irmãos da igreja de Campestre se uniram e cada um contribuiu com um pouco a fim de mandar para o colégio em São Paulo um jovem humilde mas promissor, chamado Roberto Mendes Rabello, filho dos conversos do local, e com 16 anos de idade na época. Anos depois, em 1943, Roberto se tornaria o fundador de A Voz da Profecia, primeiro programa religioso de âmbito nacional, transmitido no Brasil pelo rádio. Como escreveu o Pastor Léo Ranzolin (Revista Adventista, novembro de 1996, p. 7), “a Voz, no Brasil, era a Voz da Profecia. Mas tinha igualmente um duplo significado, pois aquela ‘voz’ era a voz suave, penetrante, que cativou adventistas e evangélicos por quase 50 anos”, a voz de Robeto Rabello. O Pastor Rabello faleceu no dia 16 de agosto de 1996, com 86 anos.
Roberto Rabello, fundador de A Voz da Profecia no Brasil
Da comunidade de Rolante, Irineu Amador dos Reis, Rodrigo Amador dos Reis Filho e José Amador dos Reis saíram para colportar. Os dois primeiros logo voltaram às atividades agrícolas, mas José continuou colportando. O filho de Rodrigo e Ludovina tinha habilidade especial não só para colportar como também para explicar a Bíblia e pregar, por isso convidaram-no para trabalhar como obreiro bíblico, recebendo a credencial em 1914, conforme o relatório da 9ª sessão da Conferência do Rio Grande do Sul, publicado em março daquele ano. No dia 10 de abril de 1920, foi ordenado ao ministério, no fim da memorável 14ª assembléia da Conferência do Rio Grande do Sul. Tornou-se, assim, o primeiro pastor adventista ordenado no Brasil.
“Os esforços longamente expedidos nos primeiros anos de trabalho como colportor e obreiro na campanha gaúcha, muitas vezes exposto aos rigores do clima de inverno, apanhando chuva, dormindo em ambientes precários e se alimentando frugalmente, cobravam agora um pesado tributo.”[2] José Amador dos Reis faleceu no dia 23 de maio de 1935, com 43 anos incompletos, vítima de tuberculose. O valente soldado de Cristo tombou onde começou seu ministério: em Rolante, RS.
José Amador dos Reis, primeiro pastor ordenado no Brasil
Depois das lutas, a vitória
“Só em parte se pode apreciar quão amargos eram esses primeiros acontecimentos [relativos ao início da Obra] naquela época, sendo que os isolados mensageiros, que trabalhavam em lugares muito distantes uns dos outros, dificilmente podiam inteirar-se do progresso feito ou apreciar o significado de tais princípios.”[3]
E as dificuldades e lutas enfrentadas pelos pioneiros ficam evidentes quando investigamos as publicações e relatórios missionários da época. Relatos como estes eram típicos:
“Na manhã de Páscoa, quando eu e minha mulher estávamos de volta de uma visita a uma família interessada, fomos de caminho agredidos a pedras por um grupo de sete pessoas. Entretanto, o Senhor não permitiu que aqueles nos atingissem... Algumas dessas pedras eram de tamanho considerável... Parece às vezes que Satanás tomou posse completa deste povo. Quando passamos pela estrada, fazem uma algazarra, dirigindo-nos de dentro de suas casas chufas e palavras injuriosas... Oxalá o Senhor nos ajude a permanecer fiéis e fazermos a Sua vontade” (Pastor Henrique Haefft.Revista Mensal, junho de 1916, p. 8 e 9).
“Posto que ainda não inteiramente restabelecido da minha enfermidade, empreendi todavia fazer uma visita aos irmãos no município de Blumenau, sendo acompanhado nessa viagem por minha mulher, que desejava conhecer os irmãos daquela região. Partimos a 6 de junho, confiando num tempo sofrível que então fazia, mas que mudou completamente, chovendo durante os dez dias que gastamos para chegar a Benedito Novo. As estradas tornaram-se praticamente intransitáveis, sendo muitas vezes necessário caminhar a pé, visto os animais conseguirem tirar apenas o carro vazio” (Pastor Augusto Rockel. Revista Mensal, setembro de 1916, p. 9).
“Ao partir [de Lençol] deparamos com obstáculos ocasionados pela incessante chuva. Devido a um desmoronamento de barrancos ficou obstruída a linha da estrada de ferro, razão porque enfim vimo-nos na conjectura de continuar nossa viagem a pé até Hansa. Passamos mal de viagem – e não era para menos –, mas alcançamos o nosso destino, onde encontramos todos os irmãos alegres” (Pastor Francisco Belz. Relatório de viagem na Revista Mensal, junho de 1918, p. 8).
“Uma noite ao voltar para casa, fui inesperadamente assaltado por um jovem que, com mais três outros, me vedava o caminho. Pondo-me a faca a distância de duas polegadas do peito, mandou que lhe desse a minha palavra de não continuar com as conferências. Felizmente escapei com vida. Mais tarde veio este mesmo moço acompanhado do inspetor a fim de pedir desculpa, e prometer que nunca mais haveria de estorvar as nossas conferências” (Pastor Francisco Belz, depois de dirigir uma palestra (conferência) em Jacu-Assu, SC. Revista Mensal, junho de 1919, p. 9).
Poderíamos prosseguir com relatos de outrora, mas já é o suficiente para perceber as lutas que nossos antepassados enfrentaram. “Línguas desconhecidas, solidão, isolamento, chegada de literatura com atraso, falta de dinheiro, matas intransitáveis, planícies desertas, lodo, chuva, frio, calor, fome, doenças, açoites, furtos, prisão e a necessidade de ganhar o próprio sustento, são palavras que, juntamente com muitas outras semelhantes, deveríamos usar para nos referir à história dos primeiros esforços.”[4]
“A existência de igrejas e grupos alemães de Muçuri e Teófilo Otoni, norte de Minas Gerais, ao Rio Grande do Sul, a partir de 1895, o contato do pastor Ernesto Schwantes, em 1904, com José Lourenço Mendes, do qual surgiram as igrejas de Campestre e Rolante (cujos membros eram todos de procedência latina), o funcionamento de uma escola paroquial em cada congregação, grande ou pequena, para inculcar nas crianças os princípios cristãos e os ideais missionários, a publicação do Arauto da Verdade em português e a mudança da Casa Publicadora Brasileira para São Paulo, em 1907, em condições de fornecer a literatura necessária, criaram condições para a pregação do adventismo de leste a oeste e de norte a sul do vasto território nacional.”[5]
Referências:
1. Meyers, E. H. Reseña de los Comienzos de la Obra en Sudamerica, Buenos Aires: Casa Editora Sudamericana, p. 19.
2. Schmidt, Ivan. José Amador dos Reis, Pastor e Pioneiro, Santo André, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1980, p. 106.
3. Spicer, W. A. Our Story of Missions for Colleges and Academies, p. 265, citado por E. H. Meyers, op. cit, p. 6.
4. Rebello, João. John Boehm, Educador Pioneiro, São Paulo: Instituto Adventista de Ensino, 1990, p. 63 e 64.
Acesso Teológico
Naldo JB
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