A compreensão das profecias
apocalípticas conduz à valorização da paz e da liberdade religiosa
A cada novo atentado
terrorista, a discussão sobre o fundamentalismo religioso vem à tona no
Ocidente. O assunto ganha mais e mais volume, sendo debatido intensamente mesmo
em países distantes do terror. Alguns têm sido levados a repensar a própria
dinâmica entre a religião e o estado, o que faz acender uma luz amarela no
painel profético. Em primeiro lugar, porque uma corrente defende a revisão dos
direitos de certas pessoas, numa negação dos princípios democráticos. Outra
corrente defende a imposição de uma supremacia cristã sobre a sociedade. Certos
grupos da direita cristã nos EUA lutam pelo fim da separação entre igreja e estado,
sendo que foi justamente essa separação que possibilitou a existência de
liberdade religiosa, e o fim dela certamente representaria o início da tirania
e da perseguição religiosa.[1]
Para os fundadores da nação
americana, pioneira em liberdade religiosa, a separação entre igreja estado
permitiria uma coexistência pacífica entre o laicismo e a religião, de modo que
preservaria a integridade de ambos.[2] Nesse modelo, a democracia e a liberdade
de crença passaram a ser considerados como valores em si mesmos, o que enobrece
o poder público. A religião, por sua vez, não precisou negociar seus valores
como faria caso se comprometesse com a política. Porém, quando criminosos se
valem dos direitos democráticos para tirar vidas humanas em nome de Deus,
alguns começam a cogitar que nem todos deveriam ser tratados da mesma forma, o
que significaria um retrocesso dos princípios democráticos. Assim, o dilema dos
governantes é como combater o terrorismo sem abrir mão dos valores ocidentais.
Fundamentalismos
Na discussão sobre o
fundamentalismo cabe citar uma frase atribuída ao pensador francês Voltaire:
“Se queres conversar comigo, define primeiro os termos que usas.” Talvez o
maior problema nesse debate seja a própria definição do termo
“fundamentalismo”. Esse rótulo tem servido para classificar negativamente todo
tipo de gente religiosa, desde os monstros que atacam pessoas em aviões e
shoppings, até aqueles que vão humildemente à igreja e acreditam na Bíblia como
um livro sagrado e verdadeiro. Parece não haver na linguagem popular uma
distinção clara entre ambos os grupos.
De acordo com George
Marsden, o termo fundamentalismo surgiu no início do século 20 nos Estados
Unidos, a partir do confronto entre o cristianismo protestante tradicional e a
teologia modernista do evangelicalismo americano.[3] Certos “fundamentos”
doutrinários se contrapunham à crítica histórica e liberal que reduz os
escritos bíblicos a um produto da cultura. Assim, o conceito clássico do
fundamentalismo expressa a adesão estrita a um texto sagrado, especialmente
quanto à existência de Deus, ao criacionismo e à condição humana.
Os terroristas islâmicos
reclamam um apego incondicional a sua compreensão do texto sagrado, porém isso
não os iguala à imensa maioria de religiosos (muçulmanos, cristãos, judeus,
etc.) que jamais pegariam em armas para matar, muito menos em nome da religião.
A interpretação dos textos leva alguns à radicalização, e outros, ao pacifismo.
Porém, essa forma de pensar não é característica apenas dos meios religiosos: o
compromisso radical com ideologias políticas e seus “textos sagrados”, entre
eles O Capital e Minha Luta, já provocou o extermínio de mais de 100 milhões de
pessoas sob as ordens de sanguinários como Hitler, Stalin e Mao Tsé-Tung.
O papel da escatologia
Para as ideologias
religiosas, tanto o pacifismo quanto a radicalização passam, de modo especial,
pela escatologia. Frequentemente, é uma interpretação escatológica que faz com
que grupos extremistas assumam uma postura violenta, pois se sentem chamados a fundar
um tipo de reino de Deus aqui e agora. É nesse ponto que surge a importância de
uma compreensão adequada dos livros apocalípticos da Bíblia. Uma de suas
belíssimas características é a revelação da concretização do reino escatológico
não pela imposição humana, mas pela intervenção divina. Não são os súditos
humanos que vindicam pela força o Soberano divino, mas é Deus que intervém
soberanamente nos assuntos humanos.
A intervenção divina é
evidente em Daniel 2. A pedra que esmiúça a estátua a qual representa uma
sequência de impérios humanos é “cortada sem o auxílio de mãos” (v. 34), o que
representa o ensino de que “o Deus do céu suscitará um reino” (v. 43). “O
reino, e o domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados
ao povo dos santos do Altíssimo”, e não tomados por eles à força (Daniel 7:27).
O próprio Jesus disse e reiterou que, em sua primeira vinda, seu reino não era
deste mundo (João 18:36). Contudo, em sua segunda vinda, a situação se
reverterá, pois chegará o momento em que “o reino do mundo se tornou de nosso
Senhor e do seu Cristo” (Apocalipse 11:15). Nos textos apocalípticos, os filhos
de Deus não portam armas; pelo contrário, são vítimas cujo sangue derramado
clama pela justiça divina (Apocalipse 6:9, 10).
Perspectiva adventista
Especificamente, no caso do
adventismo, que se vê como um movimento inspirado e originado primariamente dos
textos escatológicos de Daniel e Apocalipse, o pacifismo é uma de suas
características mais evidentes em vários aspectos:
(1) Na tradição histórica da
não combatência, exemplificada em incríveis biografias. Uma delas é a do
adventista americano Desmond Doss, o primeiro “objetor de consciência” a se
recusar a pegar em armas na Segunda Guerra Mundial e que foi condecorado com a
medalha de honra, por ter salvado muitas vidas como padioleiro. Do mesmo modo
procedeu o adventista alemão Franz Hasel, que aos 40 anos foi forçado a servir
em uma unidade de elite, construtora de pontes, do exército de Hitler. Hasel,
que fez um voto de não matar, jogou sua pistola fora e confeccionou uma arma de
madeira para levar na cintura. Como sua unidade ia à frente do exército, ele
ainda salvou muitos judeus, avisando-os para fugirem a fim de não serem pegos
pela SS (confira essa história no livro Mil Cairão ao Teu Lado). Ao longo de
toda a guerra Hasel não deu um único tiro.
(2) Na defesa da liberdade
religiosa como um valor em si. A partir de sua compreensão do livre-arbítrio
como um princípio divino, os adventistas têm, no campo jurídico, um dos
serviços mais organizados e bem-sucedidos em defesa do direito da crença, mesmo
daqueles que pensam diferentemente deles. Aqui cabe outra frase atribuída a
Voltaire, mas que foi usada por Evelyn Beatrice Hall em correspondência com o
iluminista francês: “Não concordo com uma palavra do que você diz, mas
defenderei até a morte o direito de dizê-las”. Os adventistas pensam assim.
(3) Na defesa da separação
entre igreja e estado e numa postura apolítica. Assim como os fundadores da
nação americana, os adventistas acreditam que a união entre a igreja e o estado
fatalmente produz opressão e corrompe ambas as esferas.
(4) Na crença de que o
conflito é primordialmente espiritual e de que sua missão é falar ao coração.
Seguindo os ensinos bíblicos, os adventistas acreditam que sua única razão de
existir é para pregar o “evangelho eterno” ao mundo (Apocalipse 14:6) e que sua
única arma é a Palavra de Deus, a qual alcança o mais profundo do ser, num
apelo puramente espiritual e religioso (Hebreus 4:12).
Não é à toa que a organização
adventista está espalhada em 216 países do mundo. Se a Igreja não fosse
pacifista nem se preocupasse com o dia-a-dia das pessoas, não teria tantas
portas abertas nem seria tão multicultural. Ŋossa escatologia nos impulsiona a
sermos melhores cidadãos, a cuidarmos do corpo e do planeta, a votarmos
conscientemente, a servirmos a sociedade com igrejas, escolas, universidades,
hospitais, fábricas de alimentos, agência humanitária, mídias de massa, lanchas
e aviões, sem mencionar uma infinidade de ministérios e campanhas que buscam
ajudar pessoas e aliviar sua dor aqui e agora.
À medida que a discussão
sobre os fundamentalistas avança e sombras se acumulam, é preciso cuidado para
não se misturar o joio com o trigo. Há os que se explodem com bombas, há os que
pregam a violência, há os religiosos que pretendem dominar a política, mas há
também uma grande maioria dos que amam o Deus de amor e que projetam sua maior
esperança para o Reino. Isso não os faz menos ligados à realidade ou
descomprometidos com o bem-estar social; pelo contrário, os motiva a amar o
semelhante e, se preciso, dar a vida por ele (1João 3:16). O estudo das
promessas sobre o futuro conduz a uma vida mais consciente e responsável no
presente, e isso deve ser reconhecido. “Bem-aventurados os pacificadores,
porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9).
Referências:
[1] Moore, Marvin.
Apocalipse 13: Isso Poderia Realmente Acontecer? Tatuí-SP: Casa Publicadora
Brasileira, 2013, p. 262, 264.
[2] Ibid. 268, 269.
[3] Marsden, George M. Fundamentalism and American Culture. Nova York:
Oxford University Press, 2006, p. 4.
Fonte: Portal Adventista
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