Filmes bíblicos recentes desfiguram as histórias e a
mensagem do livro sagrado
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Hollywood se voltou à Bíblia e de maneira surpreendente. Uma
década depois de A Paixão de Cristo (2004), em um ano, foram lançados três
filmes bíblicos: O Filho de Deus, Noé e Êxodo: Deuses e Reis. E os dois últimos
revelam uma tendência preocupante: mais do que adaptações, são reconstruções
extremas. Em Êxodo, por exemplo, Deus é retratado como uma criança psicopata ou
uma alucinação que só um Moisés esquizofrênico pode ver. Em Noé, a arca não foi
construída somente pelo protagonista e sua família, mas com a ajuda de gigantes
de pedra, que na verdade são anjos caídos. Esses gigantes se sacrificam para
defender a arca contra os homens de Tubalcaim e, por isso, são readmitidos no
Céu.
O faro comercial de Hollywood foi aguçado pelo sucesso de
uma série bíblica conservadora, The Bible, exibida em março de 2013 pelo canal
History. Tendo procurado contar a história bíblica da maneira mais fiel
possível ao relato original, a série alcançou grande audiência nos Estados
Unidos e na América Latina. Tanto que os cinco episódios dedicados a Jesus
foram reunidos e, com cenas extras, transformados no filme O Filho de Deus. A
intenção declarada dos diretores Roma Downey e Mark Burnett era “influenciar
uma nova geração de telespectadores e trazê-la de volta para a Bíblia”.
Se Downey e Burnett quiseram encaminhar o público para a
Bíblia, os diretores dos filmes Noé e Êxodo também tiveram suas intenções. O
retrato negativo que fazem de Deus e dos protagonistas Noé e Moisés não
caracteriza apenas uma licença artística, mas a apresentação de sua visão
particular da Bíblia e da realidade. Ao passo que o ateu Darren Aronofsky,
diretor de Noé, procura literalmente mitologizar o relato do dilúvio com os
gigantes, o agnóstico Ridley Scott tenta desmistificar a história do êxodo ao
apresentar as pragas como efeito de causas naturais. No mesmo filme, o Mar
Vermelho não se abre, mas recua devido a um terremoto, e Moisés é pego pelo
tsunami, junto com Ramsés (e ambos não morrem). No entanto, o conjunto e a
sequência dos efeitos aparentemente naturais insinuam a atividade de um ser
superior.
Pecado inevitável
Segundo a doutora Adele Reinhartz, professora de estudos
clássicos e de religião na Universidade de Ottawa e autora de várias obras,
entre elas Bible and Cinema (2013), os filmes bíblicos representam mais o
presente do que o passado. Em meados do século 20, por exemplo, os filmes
bíblicos do Antigo Testamento “falavam mais sobre a América […] do que sobre o
antigo Israel” (p. 2). Os filmes antigos identificavam claramente os Estados
Unidos como herdeiros do antigo Israel, comissionados para difundir valores
como a democracia e a liberdade.
Nos filmes recentes, as preocupações do passado são
substituídas pelas ansiedades do século 21. Abordam-se temas mais relacionados
a questões globais como meio ambiente e terrorismo. Em entrevista à Revista
Adventista, a doutora Reinhartz afirma: “O clima de medo do terrorismo após 11
de setembro também afeta o humor desses filmes.” Moisés volta para o Egito e
pratica atos terroristas, como destaca Isabela Boscov na revista Veja (24 de
dezembro de 2014). Flechas incendiárias são lançadas contra barcos egípcios,
como que justificando o lançamento de foguetes por parte do Hamas contra
Israel, atualmente. O teor ambientalista do filme Noé é evidente. No campo
psicológico de ambos, predominam a incerteza e o misticismo pós-modernos.
"Os filmes distorcidos de Hollywood
deformam a compreensão das Escrituras
por parte do público biblicamente iletrado
e até dos que conhecem as narrativas do livro sagrado"
Segundo a doutora Reinhartz, a característica comum a todos
os filmes bíblicos é a “acusação de infidelidade”. Ela explica que “toda
adaptação cinemática de um livro difere de maneira significativa de sua fonte.
As histórias devem ser encurtadas, simplificadas, ampliadas ou reorganizadas”
para se encaixar no formato filme. Os diretores “tanto complementam quanto
contradizem suas fontes bíblicas. Ao mesmo tempo em que, como cineastas,
reivindicam implicitamente que seus filmes são autênticos, subvertem essa
reivindicação pelo próprio ato de adaptar a Escritura para o cinema” (p.
26-29).
Um ponto importante é o preenchimento das lacunas que as
narrativas bíblicas deixam, como a infância de Jesus e o casamento de Rute com
Malom. De acordo com Reinhartz, “as lacunas são preenchidas não somente pelas
ideias originais dos cineastas, mas também ao fazerem alusões a uma ampla
variedade de fontes artísticas, musicais, dramáticas e populares, algumas
relacionadas ao tema […] e outras bem estranhas a ele”, como alusões a outros
filmes (p. 29).
A interpretação é outro elemento importante. Alguns filmes
fazem o espectador se envolver negativamente com o personagem bíblico. Um
exemplo disso está no filme David and Bathsheba (1951). O relato original
informa apenas que o rei viu “uma mulher tomando banho” (2 Samuel 11:1, 2). Já
no filme Bate-Seba lança um olhar diretamente para a câmera. Afinal, ela está
olhando para Davi ou para o espectador? A ambiguidade é intencional, para fazer
o espectador sentir o que Davi sentiu.
A situação se agrava quando o filme deixa claro que
Bate-Seba tinha um casamento infeliz. Urias não era um bom marido. Quando Davi
descobre que Bate-Seba está grávida, faz arranjos para que o marido dela passe
uma noite em casa. Urias se recusa e é descrito como estando mais preocupado
com o trabalho do que com a esposa. “Como um negligente workaholic, Urias não
merece sua bela esposa”, explica a doutora Adele, em seu livro. “Talvez ele não
mereça morrer […], mas ainda assim é difícil lamentar por ele. Ao nos
identificarmos com o rei arrojado e apaixonado, nos tornamos cúmplices, pelo
menos em espírito, na transgressão do sexto mandamento por Davi – ‘não
matarás’” (p. 34).
Longe de querer apresentar mensagens moralmente negativas,
alguns projetos cinematográficos de certos grupos, igrejas e organizações
paraeclesiásticas se esforçam para transmitir uma mensagem mais coerente com a
Bíblia. Assim, surgiram filmes
como Jesus de Nazaré (1977), Jesus (1979), The Life of Jesus Christ (2003), The
Gospel of John (2003), Esther (2006) e The Nativity Story (2006). Entretanto,
esses filmes também requerem um olhar crítico e comprometido com o texto
bíblico.
PORQUE MUITOS NÃO GOSTAM DE FILMES BÍBLICOS DE HOLLYWOOD
- Deus é representado como um ser frio, insensível e tirano.
- A maioria dos filmes bíblicos enfatiza o mérito humano e marginaliza Deus.
- A fidelidade ao texto bíblico é importante para nós. Em uma pesquisa conduzida em 2014 pela American Insights, “a precisão histórica e bíblica é importante” para 79% dos cristãos americanos.
- Fatos, datas e personagens são alterados arbitrariamente nesses filmes. No filme Êxodo, Moisés volta para o Egito apenas nove anos depois de ter saído de lá.
- Alguns filmes apresentam cenas ofensivas e blasfemas, como as de uma suposta imaginação de Jesus sofrendo tentações sexuais em A Última Tentação de Cristo (1988) e a de um Herodes gay dançando e zombando diante de um Jesus frágil em Jesus Christ Superstar (1973).
- Alguns filmes bíblicos de Hollywood podem ser classificados como piores do que muitos filmes não bíblicos.
- Muitos filmes bíblicos dão a falsa impressão de edificar espiritualmente. Os filmes impressionam a consciência humana e, em relação a qualquer um deles, precisamos desenvolver uma postura crítica.
Reflexão
Se alguns filmes bíblicos antigos fizeram graves adaptações,
para muita gente tanto o filme Noé quanto Êxodo ultrapassaram os limites.
“Assisti a Noé. Uma vergonha”, desabafa Werlen Gonçalves, de Colatina (ES). “O
filme mostra outra história”, completa. Priscila Parra, 33 anos, de São Paulo,
conta que pesquisou o assunto e descobriu a inspiração cabalística do filme
Noé. Vanessa Spangenberg, 31 anos, de Pirassununga (SP), acredita que esses
filmes tenham “a intenção de nos distanciar da verdade apresentada na Bíblia”.
Para Everson Fragoso, 27 anos, de São Paulo, o filme Noé
reflete o pensamento pós-moderno: “Noé pensa que está ouvindo a ordem direta e
inequívoca de Deus para matar suas netas. Então, decide que estava enganado. Ou
seja, não existe algo como verdade absoluta nem revelação divina objetiva.” “É
um absurdo você ver um filme bíblico e esperar que ele seja fiel à Bíblia”,
afirma Jader Silveira, 27 anos, estudante de Teologia no IAP.
Alguns destacam que os filmes bíblicos de Hollywood têm
despertado interesse no público secular pelo livro sagrado, e de fato isso
ocorre em certos casos. Por exemplo, houve um aumento médio de 300% do número
de downloads do aplicativo bíblico YouVersion. Esse caso parece se aplicar bem
ao princípio de Filipenses 1:18, de que a divulgação do evangelho avança “quer
por pretexto, quer por verdade”. Porém, na cultura imediatista,
intelectualmente rasa e pouco inclinada à leitura e à reflexão, a grande
maioria dos espectadores não costuma pesquisar um tema depois de assistir a um
filme. O próprio número de pessoas que procuraram o aplicativo bíblico
representa uma fração invisível dos milhões influenciados pelos filmes. Para a
maioria absoluta, parece que os filmes têm grande peso, como ocorreu em relação
ao filme O Código Da Vinci.
“Fico preocupado com a afirmação de algumas pessoas que
dizem: ‘Temos que reter o que é bom; a gente tem que ser equilibrado’, pois
muita gente não sabe o que é bom”, expressa Adriano Vargas, 34 anos, estudante
de Teologia no Unasp. “Veem o filme Paixão de Cristo e pensam que aquilo ali é
Jesus, e não é. Veem o filme O Filho de Deus e só elogiam, mas ele sequer
transmite os discursos de Cristo”, analisa.
O argumento do interesse pode ser equilibrado com o da
influência. Os filmes distorcidos de Hollywood deformam a compreensão da Bíblia
não só por parte do público biblicamente iletrado, mas também daqueles que
supostamente conhecem o livro sagrado. Segundo a doutora Adele Reinhartz, os
filmes têm o “potencial de reforçar, desafiar, derrubar ou cristalizar
perspectivas religiosas, suposições ideológicas e valores fundamentais”, pois
“seus públicos absorvem informação e pontos de vista sobre a Bíblia ao
assistir-lhes” (p. 12, 47). Em entrevista, ela afirma que “muitos espectadores,
especialmente aqueles que não têm muita familiaridade com a Bíblia, podem
extrair sua compreensão das histórias bíblicas a partir desses filmes.” Isso é
expresso no pensamento de Ellen White: “Pela contemplação somos transformados”
(Mente, Caráter e Personalidade, v. 1, p. 225).
Outro princípio bíblico é o da importância inegociável da
verdade. O mundo acadêmico e a indústria do entretenimento fazem de tudo para
dissolver a objetividade e a historicidade das narrativas bíblicas, a fim de
extrair suas “vitaminas subjetivas” (conceitos de amor, justiça, respeito ao
meio ambiente). Por sua vez, o povo de Deus é chamado a pregar a verdade
presente e o evangelho eterno (Apocalipse 14:6). Devemos “comprar a verdade” e
não vendê-la (Provérbios 23:23).
Ellen White não escreveu sobre filmes, apesar de o primeiro
filme bíblico mudo, Passion’s Play, ter sido exibido em 1897 nos Estados
Unidos, quase 18 anos antes de sua morte. Contudo, ela condenou veementemente
tanto o ato de ir ao teatro quanto o uso de recursos teatrais na exposição do
evangelho: “Entre os mais perigosos lugares de diversões, acha-se o teatro. […]
Todo jovem que costuma assistir a essas exibições se corromperá em seus
princípios” (Mensagens aos Jovens, p. 380). “Nem um jota nem um til de qualquer
coisa teatral deve aparecer em nossa obra […], pois isso prejudicaria a
santidade da obra” (Evangelismo, p. 137). A interpretação de seus comentários
sobre o teatro e sua relação com o cinema como arte merecem um estudo especial.
Em toda essa discussão, mais alarmante do que as
falsificações de Hollywood é o analfabetismo bíblico notado em parte
significativa dos membros de igreja. Na ausência de um conhecimento sólido da
Bíblia, muitos são influenciados facilmente pelo ateísmo, niilismo,
agnosticismo, tradicionalismo, misticismo e hedonismo dos cineastas. “A igreja
do Deus vivo, coluna e baluarte da verdade”, deve resistir à cultura sedutora
nos últimos dias, numa época em que muitos se recusam “a dar ouvidos à verdade,
entregando-se às fábulas” (2 Timóteo 4:4). Precisamos redescobrir o prazer de
estudar a Bíblia, permitindo que a mente compreenda bem as histórias e, acima
de tudo, a mensagem da Palavra de Deus. [Ilustrações: Fotolia]
Diogo Cavalcanti é editor na Casa Publicadora Brasileira
Fonte: Revista Adventista
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