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quarta-feira, 8 de abril de 2015

O FENÔMENO DAS LÍNGUAS ESTRANHAS


A experiência das línguas estranhas está hoje atravessando fronteiras denominacionais e envolvendo tanto grupos protestantes quanto católicos. Alega-se, com freqüência, que uma pessoa que se torna um cristão nascido de novo e recebe o batismo de fogo do Espírito Santo, deveria ser capaz de falar em línguas e deveria empenhar-se decididamente para obter tal experiência.

Para os pentecostais, o dom de línguas é um aspecto fundamental na vida cristã, pois se algum crente ainda não falou em línguas, é porque não foi batizado pelo Espírito Santo.

Os textos bíblicos mais usados pelos defensores das línguas estranhas são: Mc 16:16-17; At 2:10,19; 1 Co 14. O propósito deste artigo é analisar os textos bíblicos usados pelos pentecostais.

         São Marcos 16:16-17

O texto sagrado declara: “Quem crer e for batizado será salvo, quem, porém, não crer será condenado. Estes sinais hão de acompanhar aqueles que crêem: em meu nome expelirão demônios; falarão novas línguas”.

Este dom é mencionado por Cristo em forma de uma promessa, que lhes possibilitava pregar o evangelho do Reino na linguagem daqueles que ouviriam as boas novas de salvação.
Pedro Apolinário explica o texto bíblico de Marcos, da seguinte forma:

“O adjetivo ‘novas’ não quer dizer línguas inexistentes, como defendem alguns, mas línguas estrangeiras que eles falariam sem as terem aprendido.... É interessante saber que há em grego duas palavras para novo – néos e kainós. Néos é o novo na forma ou qualidade. Cristo aqui usou kainós, porque se referiu ao novo, não usado.”1

“Um novo dom foi então prometido. Deviam pregar entre outras nações e recebiam poder de falar em outras línguas. Os apóstolos e seus cooperadores eram homens iletrados, todavia mediante o derramamento do Espírito, no dia de Pentecostes, sua linguagem, fosse no próprio idioma, ou no estrangeiro, tornou-se pura, simples, correta, tanto nas palavras como no acento.”2

         Atos 2

Atos 2:1-11 apresenta a enorme diferença entre o verdadeiro dom de línguas manifestado entre os discípulos de Jesus e o falso dom de línguas defendido pelos pentecostais de hoje.

A concessão do dom de línguas relatada em Atos 2 foi à maravilhosa capacitação dos discípulos para cumprirem a ordem de ir e pregar o evangelho a todo o mundo (Mat. 28:19). O grande desafio era o seguinte: como homens simples (os discípulos) poderiam pregar o evangelho para pessoas de diferentes nacionalidades, reunidas para a festa de Pentecostes?

“Durante a dispersão, os judeus tinham sido espalhados por quase todas as partes do mundo habitado, e em seu exílio tinham aprendido a falar várias línguas. Muitos desses judeus estavam, nessa ocasião, em Jerusalém assistindo às festas religiosas que então se realizavam. Cada língua conhecida estava por eles representada. Esta divergência de línguas teria sido um grande embaraço à proclamação do evangelho; Deus, portanto, de maneira miraculosa, supriu a deficiência dos Apóstolos. O Espírito Santo fez por eles o que não teriam podido fazer por si mesmos em toda uma existência.”3

Note que essas outras línguas não eram estranhas, pois os representantes dos 16 idiomas, ali presentes, entendiam perfeitamente o que os discípulos diziam, “Todos os temos ouvido em nossas próprias línguas... (Atos 2:11)”. Esse é o verdadeiro dom de línguas. Outro detalhe importante é que, em Atos 2, a palavra grega para línguas é glôssa. Ela também é encontrada em Atos 10 e 19, e significa língua de nações.

Em Atos 2:6 é mencionada a confusão das pessoas, ao que tudo indica, buscando ao discípulo que estava falando o idioma que lhes era conhecido. E, ao perceber que os galileus, de fato, estavam falando em vários idiomas, a multidão ficou maravilhada (Atos 2:7). O fato de os onze discípulos terem se colocado em pé, quando Pedro começou a explicar o fenômeno, provavelmente em aramaico (associando-o a profecia de Joel 2), evidencia que estavam traduzindo as palavras de Pedro para os diversos idiomas ali representados. Além disso, ao final do sermão as pessoas perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: “Que faremos irmãos? (Atos 2:37”. Foi Pedro quem pregou. Por que então os doze apóstolos tiveram que responder à pergunta da multidão? Cada grupo lingüístico, naturalmente, perguntou ao apóstolo que estava traduzindo o sermão para o seu idioma.

Em sua sabedoria, Deus viu que aquele era o momento oportuno para levar o evangelho a várias nações, e concedeu o dom necessário no momento certo. Logo, o dom de línguas foi concedido com um propósito evangelístico (ver Atos 2:37-39).

“Agora podiam proclamar as verdades do evangelho por toda a parte, falando com perfeição a língua daqueles por quem trabalhavam... Daí por diante, a linguagem dos discípulos era pura, simples e acurada, falassem eles no idioma materno, ou numa língua estrangeira.... As boas-novas de um Salvador ressuscitado foram levadas até as mais longínquas partes do mundo habitado.”4
“Sons e enunciações ininteligíveis sempre foram características do paganismo, e hoje são comuns nas reuniões espíritas, nos candomblés e centros umbandistas. Ali são faladas também línguas estranhas.”5 Ao contrário do que aconteceu no Pentecostes (quase três mil pessoas convertidas, ver Atos 2:41), as chamadas línguas estranhas dos pentecostais não têm nenhum fim evangelístico, pois são faladas entre os próprios crentes de uma mesma nacionalidade.

         Atos 10

“E, dizendo Pedro ainda estas palavras, caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra. E os fiéis que eram da circuncisão, todos quantos tinham vindo com Pedro, maravilharam-se que o dom do Espírito Santo se derramasse também sobre os gentios. Porque se ouviam falar línguas e magnificar a Deus. Respondeu então Pedro: Pode alguém porventura recusar a água, para que não sejam batizados estes, que também receberam, como nós, o Espírito Santo?” (Atos 10:44-47).

“A enfática, ‘também receberam como nós’, é uma expressão afirmativa, bem como comparativa (Pedro está se reportando à descida do Espírito Santo em Jerusalém). O Pentecostes repetiu-se com Cornélio, romano que sofria a discriminação dos judeus ‘da circuncisão’”.6

Assim, a concessão do dom aos gentios cumpriu um duplo propósito: a demonstração clara de que Deus não faz acepção de pessoas e a pregação do evangelho em uma cidade que, também, abrigava pessoas de muitas nacionalidades, por ser residência de procuradores romanos (Atos 10:1). Em Cesaréia, deu-se a repetição do Pentecostes.

“A diferença ente este relato e o de Atos 2 parece ser o seguinte: no Pentecostes, o falar em línguas foi o meio usado por Deus para anunciar o evangelho aos judeus que vieram à Jerusalém. Na casa de Cornélio, o falar línguas foi um sinal para que os circunstantes cressem que Deus não faz acepção de pessoas.”7

Outro aspecto digno denota é o fato de que o Espírito Santo não veio como resultado de uma busca fervorosa. Foi, na verdade, uma surpresa para todos (ver Atos 10:45). O dom do Espírito aqui é a conversão. O dom do Espírito não era uma experiência separada da conversão, mas uma experiência de salvação. Os recém-conversos foram imediatamente batizados, pois o batismo nas águas e o batismo no Espírito fazem parte de uma nova experiência, de tal maneira que formam um batismo na igreja (I Co 12:13).

         Atos 19

Éfeso era a capital da Ásia Menor, uma cidade pagã (Atos 19:27) e portuária e, por isso, muito carente de mensagem cristã. Mas como uma igreja tão fraca, despreparada e pequena (uns doze homens, Atos 19:7) poderia pregar em uma cidade na qual se falavam tantas línguas? Além de tudo, esses poucos homens haviam sido batizados apenas no batismo de João (Atos 19:3), e nunca haviam ouvido a respeito do Espírito Santo (Atos 19:2). Era um desafio para a pequena igreja.

A primeira providência imediata seria o rebatismo em nome da Trindade para poderem receber o poder celestial, e o receberam: “E, impondo-lhe Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e tanto falavam em línguas como profetizavam” (Atos 19:6).

“Com profundo interesse e grata e pasma alegria, os irmãos atentaram para as palavras de Paulo. Pela fé aprenderam a maravilhosa verdade do sacrifício expiatório de Cristo e receberam-no como seu Redentor. Foram então batizados em nome de Jesus; e “impondo-lhes Paulo as mãos”, receberam também o batismo do Espírito Santo que os capacitou a falar as línguas de outras nações e a profetizar. Dessa forma estavam habilitados a trabalhar como missionários em Éfeso e circunvizinhanças, e também a sair para proclamar o evangelho na Ásia Menor”.8

Deus não os capacitou para satisfazer caprichos ou vaidades, ou porque queriam o dom a qualquer custo, mas para uma obra definida, necessária e urgente. Ninguém deve valer-se deste texto para afirmar que existe a doutrina do falar línguas como um sinal do recebimento do Espírito Santo. Além do Pentecostes (Atos 2), que foi uma situação muito especial, e de Cornélio, em Cesaréia (Atos 10), só há este texto (Atos 19) em Éfeso em que ocorreu posse imediata desse dom, através do poder do Espírito Santo.

A posse do dom de línguas em Éfeso foi semelhante à de Pentecostes, pois a situação era praticamente a mesma: uma cidade com pessoas de várias nacionalidades e línguas precisando ser evangelizada. E Deus os capacitou para a missão. Além disso, a palavra grega para línguas, em Atos 19, é a mesma usada em Atos 2, ou seja, glôssa, cujo significado é línguas de nações. Isto deixa claro, uma vez mais, que não se tratavam de línguas estranhas, mas sim de línguas faladas por nações da época.

         1º Coríntios 14

Foram as línguas de I Coríntios 14, da mesma natureza das línguas faladas no grande dia de Pentecostes? Ou foram as línguas estranhas, também conhecidas como estáticas?

Pentecostais e carismáticos freqüentemente afirmam que I Coríntios 14 é a chave para que possamos, hoje, definir o que seja a glossolalia. Sugerem, normalmente, que Paulo está descrevendo em I Coríntios 12-14 alguma forma de linguagem estática, produzida pelo Espírito Santo, e que permanece ininteligível tanto ao que fala quanto aos que ouvem. No entanto, numa atenta leitura do texto de I Coríntios, verificam-se fortes razões, abaixo citadas, que evidenciam que as línguas eram reais ou da mesma natureza das línguas manifestadas em Marcos 16 e Atos 2, 10 e 19.

-A expressão língua: - é usada quatro vezes em I Coríntios 12, duas vezes em I Coríntios 13 e dezessete vezes em I Coríntios 14, somando assim um total de vinte e três vezes. Em cada caso, sem exceção, a palavra usada para a língua é sempre o termo grego glôssa, a mesma expressão usada em Marcos, na predição de Jesus a respeito das novas línguas, e em Atos, por Lucas, quando descreve a experiência do Pentecostes e as manifestações do dom de línguas em Cesaréia e Éfeso. Em qual base teríamos nós autoridade para afirmar que em I Coríntios o uso da palavra deveria ser diferente? Nós não achamos tal base. Está claramente explicito que, em todos os outros lugares, a palavra através de seu contexto significa linguagem ou linguagens, porque então deveria ser o uso mudado nesta passagem? Sem dúvida, não há nenhuma razão textual para a mudança da palavra. Até mesmo o apóstolo argumenta que, a não ser que a linguagem possa ser entendida por alguém, não haveria nenhuma razão para ser falada (I Co 14:9 especificamente).

- O verbo laléo – em I Coríntios 14:29 a instrução é dada para que apenas dois ou três profetas falem (laléo) e estes falem em línguas conhecidas. Em I Coríntios 14:34-35, às mulheres não é permitido falarem (laléo). Mais uma vez, aqui, a fala é comum em linguagem humana normal. Deste modo o verbo laléo é empregado por Paulo em I Coríntios14 em vários aspectos: no contexto do dom de línguas (v.9), na fala dos profetas (v. 29), e na proibição das mulheres falarem na igreja (v. 34-35). Tal uso exige que laléo refira-se à linguagem humana usual. Esta conclusão é confirmada pela citação de Isaías 28:11, em I Coríntios 14:21, onde os lábios de estrangeiros iriam falar (laléo) ao povo de Israel em outras línguas, que são idiomas. No contexto, esses versículos estão dizendo que Deus castigaria seu povo através do cativeiro quando uma linguagem estrangeira seria falada (particularmente assírio e babilônico). Deus, através do uso dessas pessoas de outra língua, iria ensinar seu povo. Esta profecia tem encontrado seu cumprimento em todas as experiências dos judeus de cativeiro, assim como através do dom de línguas na era apostólica. Pois, até mesmo agora, os judeus raramente são evangelizados em hebraico. Em todas essas circunstâncias, o cumprimento está sendo realizado através de linguagens estrangeiras;

- A atitude de Paulo – revela claramente que ele entendia as línguas, como sendo de natureza clara ou de nações. Gerhad F. Hasel apresenta a atitude de Paulo do seguinte modo:

“Primeiro Paulo deseja que todos os crentes de Corinto falem em línguas (I Co 14:5). Seu critério para medir o valor da profecia e das línguas é a da edificação e o crescimento da igreja (I Co 14:4-5 e 26). Em segundo lugar, Paulo ordena: “não proíbam o falar em línguas” (I Co 14:39). Contudo, alerta para o seu uso inadequado e provê regras para o devido uso. Em terceiro lugar, Paulo agradece a Deus “pois falo em línguas mais do que todos vocês” (I Co 14:18). Esta referência afirmativa prova que Paulo, o apóstolo para os gentios, possuía o dom de falar em línguas. Ninguém pode esquecer-se de Pedro, o apóstolo para os judeus, que também possuiu o dom, na forma que foi manifesto no Pentecostes (Atos 2:2,14; 10:46; 11:15). Não é este um ele entre o dom de línguas em Atos 2 e I Co 14?”9

- A palavra “estranha” – esta palavra não se encontra no original (grego).

Evidentemente que existem muitas outras razões para se crer que as línguas de I Coríntios são da mesma natureza das línguas manifestadas em Atos. Cremos, porém, que as razões apresentadas sejam suficientes para a nossa compreensão.

É uma pena que muitas pessoas sinceras sejam levadas ao desespero por buscarem uma experiência que consideram a presença do Espírito Santo. Acham que, por não falarem línguas estranhas não têm o Espírito de Deus. Mas como se sabe, então, que alguém tem ou não o Espírito Santo?
Jesus disse: “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mat. 7:16) e Paulo diz que,”o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gal 5:22-23). Falar em línguas e não apresentar esses atributos é, no mínimo, contraditório.

REFERÊNCIAS

1.  Pedro Apolinário,. Explicação de Textos Difíceis da Bíblia, p. 386.
2.  Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 611.
3.  ___________., Atos dos Apóstolos, p. 39-40.
4.  ___________., Idem, p. 40 e 48.
5.  Lourenço Gonzalez, Assim diz o Senhor, p. 156.
6.  ___________., Idem, p. 192.
7.  Pedro Apolinário, Explicações de Textos Difíceis da Bíblia, p. 389-390.
8.  Ellen G. White, Atos dos Apóstolos, p. 282-283.

9.  Gerhard F. Hasel, Parousia, p. 41.

 Érico T. Xavier é Doutor em Ministério pela Faculdade Teológica Sul Americana de Londrina - PR e professor no Seminário Adventista Latino Americano de Teologia (SALT-IAENE)

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