A experiência das línguas estranhas está hoje atravessando
fronteiras denominacionais e envolvendo tanto grupos protestantes quanto
católicos. Alega-se, com freqüência, que uma pessoa que se torna um cristão
nascido de novo e recebe o batismo de fogo do Espírito Santo, deveria ser capaz
de falar em línguas e deveria empenhar-se decididamente para obter tal
experiência.
Para os pentecostais, o dom de línguas é um aspecto
fundamental na vida cristã, pois se algum crente ainda não falou em línguas, é
porque não foi batizado pelo Espírito Santo.
Os textos bíblicos mais usados pelos defensores das línguas
estranhas são: Mc 16:16-17; At 2:10,19; 1 Co 14. O propósito deste artigo é
analisar os textos bíblicos usados pelos pentecostais.
São Marcos
16:16-17
O texto sagrado declara: “Quem crer e for batizado será
salvo, quem, porém, não crer será condenado. Estes sinais hão de acompanhar
aqueles que crêem: em meu nome expelirão demônios; falarão novas línguas”.
Este dom é mencionado por Cristo em forma de uma promessa,
que lhes possibilitava pregar o evangelho do Reino na linguagem daqueles que
ouviriam as boas novas de salvação.
Pedro Apolinário explica o texto bíblico de Marcos, da
seguinte forma:
“O adjetivo ‘novas’ não quer dizer línguas inexistentes,
como defendem alguns, mas línguas estrangeiras que eles falariam sem as terem
aprendido.... É interessante saber que há em grego duas palavras para novo –
néos e kainós. Néos é o novo na forma ou qualidade. Cristo aqui usou kainós,
porque se referiu ao novo, não usado.”1
“Um novo dom foi então prometido. Deviam pregar entre outras
nações e recebiam poder de falar em outras línguas. Os apóstolos e seus
cooperadores eram homens iletrados, todavia mediante o derramamento do
Espírito, no dia de Pentecostes, sua linguagem, fosse no próprio idioma, ou no
estrangeiro, tornou-se pura, simples, correta, tanto nas palavras como no
acento.”2
Atos 2
Atos 2:1-11 apresenta a enorme diferença entre o verdadeiro
dom de línguas manifestado entre os discípulos de Jesus e o falso dom de
línguas defendido pelos pentecostais de hoje.
A concessão do dom de línguas relatada em Atos 2 foi à
maravilhosa capacitação dos discípulos para cumprirem a ordem de ir e pregar o
evangelho a todo o mundo (Mat. 28:19). O grande desafio era o seguinte: como
homens simples (os discípulos) poderiam pregar o evangelho para pessoas de
diferentes nacionalidades, reunidas para a festa de Pentecostes?
“Durante a dispersão, os judeus tinham sido espalhados por
quase todas as partes do mundo habitado, e em seu exílio tinham aprendido a
falar várias línguas. Muitos desses judeus estavam, nessa ocasião, em Jerusalém
assistindo às festas religiosas que então se realizavam. Cada língua conhecida
estava por eles representada. Esta divergência de línguas teria sido um grande
embaraço à proclamação do evangelho; Deus, portanto, de maneira miraculosa,
supriu a deficiência dos Apóstolos. O Espírito Santo fez por eles o que não
teriam podido fazer por si mesmos em toda uma existência.”3
Note que essas outras línguas não eram estranhas, pois os
representantes dos 16 idiomas, ali presentes, entendiam perfeitamente o que os
discípulos diziam, “Todos os temos ouvido em nossas próprias línguas... (Atos
2:11)”. Esse é o verdadeiro dom de línguas. Outro detalhe importante é que, em
Atos 2, a palavra grega para línguas é glôssa. Ela também é encontrada em Atos
10 e 19, e significa língua de nações.
Em Atos 2:6 é mencionada a confusão das pessoas, ao que tudo
indica, buscando ao discípulo que estava falando o idioma que lhes era
conhecido. E, ao perceber que os galileus, de fato, estavam falando em vários
idiomas, a multidão ficou maravilhada (Atos 2:7). O fato de os onze discípulos
terem se colocado em pé, quando Pedro começou a explicar o fenômeno,
provavelmente em aramaico (associando-o a profecia de Joel 2), evidencia que
estavam traduzindo as palavras de Pedro para os diversos idiomas ali
representados. Além disso, ao final do sermão as pessoas perguntaram a Pedro e
aos demais apóstolos: “Que faremos irmãos? (Atos 2:37”. Foi Pedro quem pregou.
Por que então os doze apóstolos tiveram que responder à pergunta da multidão?
Cada grupo lingüístico, naturalmente, perguntou ao apóstolo que estava
traduzindo o sermão para o seu idioma.
Em sua sabedoria, Deus viu que aquele era o momento oportuno
para levar o evangelho a várias nações, e concedeu o dom necessário no momento
certo. Logo, o dom de línguas foi concedido com um propósito evangelístico (ver
Atos 2:37-39).
“Agora podiam proclamar as verdades do evangelho por toda a
parte, falando com perfeição a língua daqueles por quem trabalhavam... Daí por
diante, a linguagem dos discípulos era pura, simples e acurada, falassem eles
no idioma materno, ou numa língua estrangeira.... As boas-novas de um Salvador
ressuscitado foram levadas até as mais longínquas partes do mundo habitado.”4
“Sons e enunciações ininteligíveis sempre foram
características do paganismo, e hoje são comuns nas reuniões espíritas, nos
candomblés e centros umbandistas. Ali são faladas também línguas estranhas.”5
Ao contrário do que aconteceu no Pentecostes (quase três mil pessoas
convertidas, ver Atos 2:41), as chamadas línguas estranhas dos pentecostais não
têm nenhum fim evangelístico, pois são faladas entre os próprios crentes de uma
mesma nacionalidade.
Atos 10
“E, dizendo Pedro ainda estas palavras, caiu o Espírito
Santo sobre todos os que ouviam a palavra. E os fiéis que eram da circuncisão,
todos quantos tinham vindo com Pedro, maravilharam-se que o dom do Espírito
Santo se derramasse também sobre os gentios. Porque se ouviam falar línguas e
magnificar a Deus. Respondeu então Pedro: Pode alguém porventura recusar a
água, para que não sejam batizados estes, que também receberam, como nós, o
Espírito Santo?” (Atos 10:44-47).
“A enfática, ‘também receberam como nós’, é uma expressão
afirmativa, bem como comparativa (Pedro está se reportando à descida do
Espírito Santo em Jerusalém). O Pentecostes repetiu-se com Cornélio, romano que
sofria a discriminação dos judeus ‘da circuncisão’”.6
Assim, a concessão do dom aos gentios cumpriu um duplo
propósito: a demonstração clara de que Deus não faz acepção de pessoas e a
pregação do evangelho em uma cidade que, também, abrigava pessoas de muitas
nacionalidades, por ser residência de procuradores romanos (Atos 10:1). Em
Cesaréia, deu-se a repetição do Pentecostes.
“A diferença ente este relato e o de Atos 2 parece ser o
seguinte: no Pentecostes, o falar em línguas foi o meio usado por Deus para
anunciar o evangelho aos judeus que vieram à Jerusalém. Na casa de Cornélio, o
falar línguas foi um sinal para que os circunstantes cressem que Deus não faz
acepção de pessoas.”7
Outro aspecto digno denota é o fato de que o Espírito Santo
não veio como resultado de uma busca fervorosa. Foi, na verdade, uma surpresa
para todos (ver Atos 10:45). O dom do Espírito aqui é a conversão. O dom do
Espírito não era uma experiência separada da conversão, mas uma experiência de
salvação. Os recém-conversos foram imediatamente batizados, pois o batismo nas
águas e o batismo no Espírito fazem parte de uma nova experiência, de tal
maneira que formam um batismo na igreja (I Co 12:13).
Atos 19
Éfeso era a capital da Ásia Menor, uma cidade pagã (Atos
19:27) e portuária e, por isso, muito carente de mensagem cristã. Mas como uma
igreja tão fraca, despreparada e pequena (uns doze homens, Atos 19:7) poderia
pregar em uma cidade na qual se falavam tantas línguas? Além de tudo, esses
poucos homens haviam sido batizados apenas no batismo de João (Atos 19:3), e
nunca haviam ouvido a respeito do Espírito Santo (Atos 19:2). Era um desafio
para a pequena igreja.
A primeira providência imediata seria o rebatismo em nome da
Trindade para poderem receber o poder celestial, e o receberam: “E, impondo-lhe
Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e tanto falavam em línguas
como profetizavam” (Atos 19:6).
“Com profundo interesse e grata e pasma alegria, os irmãos
atentaram para as palavras de Paulo. Pela fé aprenderam a maravilhosa verdade
do sacrifício expiatório de Cristo e receberam-no como seu Redentor. Foram
então batizados em nome de Jesus; e “impondo-lhes Paulo as mãos”, receberam
também o batismo do Espírito Santo que os capacitou a falar as línguas de
outras nações e a profetizar. Dessa forma estavam habilitados a trabalhar como
missionários em Éfeso e circunvizinhanças, e também a sair para proclamar o
evangelho na Ásia Menor”.8
Deus não os capacitou para satisfazer caprichos ou vaidades,
ou porque queriam o dom a qualquer custo, mas para uma obra definida,
necessária e urgente. Ninguém deve valer-se deste texto para afirmar que existe
a doutrina do falar línguas como um sinal do recebimento do Espírito Santo.
Além do Pentecostes (Atos 2), que foi uma situação muito especial, e de
Cornélio, em Cesaréia (Atos 10), só há este texto (Atos 19) em Éfeso em que
ocorreu posse imediata desse dom, através do poder do Espírito Santo.
A posse do dom de línguas em Éfeso foi semelhante à de
Pentecostes, pois a situação era praticamente a mesma: uma cidade com pessoas
de várias nacionalidades e línguas precisando ser evangelizada. E Deus os
capacitou para a missão. Além disso, a palavra grega para línguas, em Atos 19,
é a mesma usada em Atos 2, ou seja, glôssa, cujo significado é línguas de
nações. Isto deixa claro, uma vez mais, que não se tratavam de línguas
estranhas, mas sim de línguas faladas por nações da época.
1º Coríntios
14
Foram as línguas de I Coríntios 14, da mesma natureza das
línguas faladas no grande dia de Pentecostes? Ou foram as línguas estranhas,
também conhecidas como estáticas?
Pentecostais e carismáticos freqüentemente afirmam que I
Coríntios 14 é a chave para que possamos, hoje, definir o que seja a
glossolalia. Sugerem, normalmente, que Paulo está descrevendo em I Coríntios
12-14 alguma forma de linguagem estática, produzida pelo Espírito Santo, e que
permanece ininteligível tanto ao que fala quanto aos que ouvem. No entanto,
numa atenta leitura do texto de I Coríntios, verificam-se fortes razões, abaixo
citadas, que evidenciam que as línguas eram reais ou da mesma natureza das
línguas manifestadas em Marcos 16 e Atos 2, 10 e 19.
-A expressão língua: - é usada quatro vezes em I Coríntios
12, duas vezes em I Coríntios 13 e dezessete vezes em I Coríntios 14, somando
assim um total de vinte e três vezes. Em cada caso, sem exceção, a palavra
usada para a língua é sempre o termo grego glôssa, a mesma expressão usada em
Marcos, na predição de Jesus a respeito das novas línguas, e em Atos, por
Lucas, quando descreve a experiência do Pentecostes e as manifestações do dom
de línguas em Cesaréia e Éfeso. Em qual base teríamos nós autoridade para
afirmar que em I Coríntios o uso da palavra deveria ser diferente? Nós não
achamos tal base. Está claramente explicito que, em todos os outros lugares, a
palavra através de seu contexto significa linguagem ou linguagens, porque então
deveria ser o uso mudado nesta passagem? Sem dúvida, não há nenhuma razão
textual para a mudança da palavra. Até mesmo o apóstolo argumenta que, a não
ser que a linguagem possa ser entendida por alguém, não haveria nenhuma razão
para ser falada (I Co 14:9 especificamente).
- O verbo laléo – em I Coríntios 14:29 a instrução é dada
para que apenas dois ou três profetas falem (laléo) e estes falem em línguas
conhecidas. Em I Coríntios 14:34-35, às mulheres não é permitido falarem
(laléo). Mais uma vez, aqui, a fala é comum em linguagem humana normal. Deste
modo o verbo laléo é empregado por Paulo em I Coríntios14 em vários aspectos:
no contexto do dom de línguas (v.9), na fala dos profetas (v. 29), e na
proibição das mulheres falarem na igreja (v. 34-35). Tal uso exige que laléo
refira-se à linguagem humana usual. Esta conclusão é confirmada pela citação de
Isaías 28:11, em I Coríntios 14:21, onde os lábios de estrangeiros iriam falar
(laléo) ao povo de Israel em outras línguas, que são idiomas. No contexto,
esses versículos estão dizendo que Deus castigaria seu povo através do
cativeiro quando uma linguagem estrangeira seria falada (particularmente
assírio e babilônico). Deus, através do uso dessas pessoas de outra língua,
iria ensinar seu povo. Esta profecia tem encontrado seu cumprimento em todas as
experiências dos judeus de cativeiro, assim como através do dom de línguas na era
apostólica. Pois, até mesmo agora, os judeus raramente são evangelizados em
hebraico. Em todas essas circunstâncias, o cumprimento está sendo realizado
através de linguagens estrangeiras;
- A atitude de Paulo – revela claramente que ele entendia as
línguas, como sendo de natureza clara ou de nações. Gerhad F. Hasel apresenta a
atitude de Paulo do seguinte modo:
“Primeiro Paulo deseja que todos os crentes de Corinto falem
em línguas (I Co 14:5). Seu critério para medir o valor da profecia e das
línguas é a da edificação e o crescimento da igreja (I Co 14:4-5 e 26). Em
segundo lugar, Paulo ordena: “não proíbam o falar em línguas” (I Co 14:39).
Contudo, alerta para o seu uso inadequado e provê regras para o devido uso. Em
terceiro lugar, Paulo agradece a Deus “pois falo em línguas mais do que todos
vocês” (I Co 14:18). Esta referência afirmativa prova que Paulo, o apóstolo
para os gentios, possuía o dom de falar em línguas. Ninguém pode esquecer-se de
Pedro, o apóstolo para os judeus, que também possuiu o dom, na forma que foi
manifesto no Pentecostes (Atos 2:2,14; 10:46; 11:15). Não é este um ele entre o
dom de línguas em Atos 2 e I Co 14?”9
- A palavra “estranha” – esta palavra não se encontra no
original (grego).
Evidentemente que existem muitas outras razões para se crer
que as línguas de I Coríntios são da mesma natureza das línguas manifestadas em
Atos. Cremos, porém, que as razões apresentadas sejam suficientes para a nossa
compreensão.
É uma pena que muitas pessoas sinceras sejam levadas ao
desespero por buscarem uma experiência que consideram a presença do Espírito
Santo. Acham que, por não falarem línguas estranhas não têm o Espírito de Deus.
Mas como se sabe, então, que alguém tem ou não o Espírito Santo?
Jesus disse: “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mat. 7:16)
e Paulo diz que,”o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade,
benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gal 5:22-23).
Falar em línguas e não apresentar esses atributos é, no mínimo, contraditório.
REFERÊNCIAS
1. Pedro Apolinário,. Explicação de Textos Difíceis da Bíblia,
p. 386.
2. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 611.
3. ___________., Atos dos Apóstolos, p. 39-40.
4. ___________., Idem, p. 40 e 48.
5. Lourenço Gonzalez, Assim diz o Senhor, p. 156.
6. ___________., Idem, p. 192.
7. Pedro Apolinário, Explicações de Textos Difíceis da Bíblia,
p. 389-390.
8. Ellen G. White, Atos dos Apóstolos, p. 282-283.
9. Gerhard F.
Hasel, Parousia, p. 41.
Érico T. Xavier é Doutor em Ministério pela Faculdade Teológica Sul Americana de Londrina - PR e professor no Seminário Adventista Latino Americano de Teologia (SALT-IAENE)
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